O mito do casal divino
Em quase todas as cosmogonias religiosas, há o mito de um casal divino que simboliza a união cósmica dos princípios masculino e feminino, o jogo de polaridades a partir do qual a vida é gerada e dá lugar à multiplicidade dos seres. Do ponto de vista astrológico, este par fundamental corresponde à polaridade Sol-Lua, sendo o Sol o portador dos atributos masculinos da força, da criatividade e da vontade, enquanto a Lua responde pela receptividade, pelo sentimento e pela fecundidade. No sincretismo religioso popular, Oxalá é identificado a Jesus Cristo, assim como Iemanjá à Virgem Maria, em suas múltiplas manifestações. Uma delas é Nossa Senhora da Glória, comemorada em 15 de agosto, razão pela qual consagrou-se em muitos terreiros de Umbanda do Rio de Janeiro o costume de cultuar o orixá feminino das águas nesse dia.
Um paralelismo digno de atenção envolve as datas de 15 de agosto e de 2 de fevereiro, quando se cultua Iemanjá na Bahia e em outros estados, como o Rio Grande do Sul. Temos aí duas festas da orixá no mesmo eixo Leão-Aquário. Contudo, não nos precipitemos: mais do que Leão-Aquário, é preciso enxergar aí a velha dicotomia verão-inverno, remetendo às referências sazonais tão presentes na religiosidade da Idade Média.
O Cristianismo como culto solar
O Cristianismo, em seus primeiros momentos, foi uma religião que afirmava fortemente os valores masculinos, assumindo, por assimilação de elementos da cultura pagã dos bárbaros germânicos, um caráter de culto solar. Aos poucos, o dia santificado da semana deixou de ser o sábado dos judeus (o dia de Saturno, como prova, por exemplo, o termo inglês Saturday) para ser o domingo, consagrado ao Sol (Sunday). Aliás, a sequência dos dias da semana guarda correspondência com os sete planetas da tradição clássica, sendo o idioma português um dos únicos que não faz menção explícita a esta conexão de origem imemorial. Em espanhol, por exemplo, temos Lunes (segunda-feira, dia da Lua), Martes (terça-feira, dia de Marte), Miércoles (quarta-feira, dia de Mercúrio), Jueves (quinta-feira, dia de Jove, ou Júpiter) e Viernes (sexta-feira, o dia venéreo, ou de Vênus).
As datas santificadas do Cristianismo revelam a progressiva assimilação de conteúdos astrológicos, sempre conectados ao fator solar. Isso explica por que a comemoração do nascimento de Cristo foi “puxada” para o final de dezembro, em correspondência com o solstício de inverno do hemisfério norte, no início de Capricórnio. E mais:
- Ao solstício de verão do hemisfério norte atribuiu-se o culto a São João Batista (Câncer). Na origem, a noite de São João era a mais curta do ano, o que lhe dava um caráter mágico, motivo dos cultos pagãos como os retratados na peça Sonho de Uma Noite de Verão, de Shakespeare.
- O equinócio de primavera do hemisfério norte corresponde aproximadamente à comemoração da Páscoa, que tem o sentido de recomeço, renascimento – Áries. Esse caráter ariano de início de um ciclo está presente no simbolismo do ovo, a origem de uma nova vida.
- O equinócio de outono do hemisfério norte é definido pelas datas de São Miguel Arcanjo (o que “pesa as almas na balança” – Libra) ou ainda dos irmãos Cosme e Damião (que simbolizam a ideia de atuar em equipe, outra conotação libriana).
- O período da quaresma e da Semana Santa, com todo o seu sentido de recolhimento e expiação de culpas coletivas, lembra claramente o sentido da casa 12 e do signo de Peixes (a martirização de Cristo). Cabe observar que Peixes é o signo que fecha um ciclo e antecede Áries (Páscoa).
Já o carnaval, outro resquício de festa pagã assimilada ao calendário religioso, era na origem um rito agrário em comemoração ao retorno do sol e da vida após o rigor do inverno. Já entre os romanos, o carnaval se confunde com a Saturnália, sendo Saturno exatamente o deus protetor da agricultura. Foram as reformas de calendário realizadas por Júlio César e Augusto que acabaram deslocando as festividades para fevereiro, em pleno rigor do inverno. Desde então, o carnaval carrega uma conotação de Aquário como signo tradicional de Saturno (a matéria) e exílio do Sol (o espírito). Outra leitura possível é a do carnaval como um período de liberdade e igualdade social (Aquário) em que o respeito aos nobres e aos poderosos (Leão) estava temporariamente anulado. Este é o sentido, por exemplo, da “festa dos tolos” ou “festa dos loucos” da Idade Média, quando todos os valores da hierarquia social eram súbita e provisoriamente subvertidos.
Iemanjá, um mito lunar
No início da Idade Média, o Cristianismo europeu já era uma religião solar e masculina. Subrepticiamente incorporadas às suas bases, estavam todos os elementos dos cultos bárbaros. Mas o princípio do feminino volta a afirmar-se aos poucos, mediante o culto cada vez mais insistente à Virgem Maria. Ei-la a desempenhar um papel mais e mais importante, até ser transformada na divina medianeira, aquela que intercede pelos pecadores junto a seu filho Jesus. Está restabelecido o casal divino, não mais na condição mítica de amantes cósmicos que se unem para engendrar toda a criação, mas da mãe que assume junto ao filho o papel de companheira de tarefas e de polo complementar. Este mesmo casal primordial é consubstanciado, num nível mais humano, em Adão e Eva como os geradores de toda a humanidade.
Voltando ao tema de Maria como medianeira, ou intermediária: este é exatamente o papel que a Astrologia Clássica reserva à Lua. Na condição de astro mais rápido e mais próximo da Terra, a Lua é vista como o grande espelho refletor, que distribui sobre nosso planeta (o chamado “mundo sublunar”) as energias dos outros corpos celestes. A Lua conecta o cósmico ao terrestre, e sua inconstância é ao mesmo tempo um símbolo adequado para a alma (o fluir e refluir de sentimentos contraditórios) e para o entrechoque de acontecimentos mundanos (a Lua é o agente que “faz as coisas acontecerem”). Da mesma forma, Maria é vista como o caminho para Jesus, próxima o suficiente do homem para entendê-lo e perdoá-lo e ao mesmo tempo próxima de Jesus, o que lhe dá condição de interceder pelos pecadores.
Sendo a Lua regente das águas e do líquido signo de Câncer, era natural que surgissem, aqui ou ali, as Virgens Marias das águas. Um dos exemplos mais elucidativos é o da própria Nossa Senhora Aparecida, cuja origem remonta ao resgate, nas águas do rio Paraíba do Sul, da imagem em madeira de uma Virgem negra. A padroeira do Brasil é, assim, uma santa que une o simbolismo das águas e da escuridão da noite, domínio da Lua. Não cabe pensar em Nossa Senhora Aparecida como uma representante da mulher brasileira negra, já que a cor, aqui, nãop tem conotação étnica, mas o sentido da representação do princípio feminino. É o negro como oposto do branco, a cor da luz, masculina por definição. A ausência de luz remete à idéia do receptivo, como a escuridão do útero onde são geradas todas as formas. Veja-se, aliás, que a padroeira da Polônia, Nossa Senhora de Chestochowa, é também uma virgem negra. E observe-se que a vinculação entre a Virgem Maria e as águas também está presente em grandes ritos populares, como o Círio de Nazaré, em Belém do Pará, e a festa de Nossa Senhora dos Navegantes, na Bahia.
Iemanjá é a contraparte “pagã” dos mesmos ritos lunares que estiveram na origem de Nossa Senhora Aparecida. Porém, Iemanjá é mais do que a tradução africana da Virgem Maria: é a expressão iorubá de um símbolo universal – a mãe divina.
Etimologicamente, Iemanjá significa mãe de todos os peixinhos. Isto faz pensar no fenômeno da piracema, o retorno sazonal dos peixes rio acima na época da desova. Tal como os peixes que, atendendo ao chamado do instinto, nadam contra a correnteza e vencem a cachoeira para retornar ao seu local de origem, a visão da Umbanda – neste ponto semelhante à do Cristianismo – é de que temos também de superar a corrente das imperfeições para retornar ao seio da divindade. Como integrantes do imenso cardume da humanidade, nosso objetivo seria a ascensão até o olho d’água, a simbólica nascente que é simultaneamente origem e destino espiritual. Os cultos afro-brasileiros têm outro orixá feminino, cujos atributos sob alguns aspectos são bastante semelhantes aos de Iemanjá, e a quem estão associados especificamente as cachoeiras e nascentes: é Oxum, outra manifestação do arquétipo da Grande Mãe.
Na Bahia e no sul do país Iemanjá é sincretizada com Nossa Senhora dos Navegantes, ou das Candeias, cultuada no dia 2 de fevereiro. Já no Rio de Janeiro os rituais dedicados a Iemanjá costumavam tomar as praias na virada do ano, com o Sol transitando em Capricórnio. Como utilizamos um calendário solar (um ano corresponde a uma volta completa da Terra em torno do Sol), a comemoração acontece numa data fixa, a de 1° de janeiro, desconectada dos ciclos lunares. A lógica, porém, diz-nos que a data correta para o ritual das águas seria a Lua Cheia de Capricórnio (uma data móvel), quando a Lua transita exatamente pelo signo oposto, Câncer. Esta Lua em domicílio regeria tanto Iemanjá quanto o próprio meio que ela habitaria, o oceano. Hábitos já bastante arraigados na população, como o de molhar os pés sete vezes nas águas do mar, ou jogar as oferendas na sétima onda, parecem atrelar-se ao sentido dos sete planetas clássicos, ou dos sete dias da semana (o que dá no mesmo). Tais costumes guardam analogia com a idéia de purgar as experiências negativas relacionadas a cada um dos planetas – os quais, na visão católica, podem ser também a expressão dos sete pecados capitais.
Iemanjá e a carta do Rio de Janeiro
Iemanjá seria então a Lua em Câncer? Em parte sim, ao menos no sentido de entendermos a polaridade que forma com o Sol, em domicílio no vizinho signo de Leão. Contudo, é preciso ir um pouco mais além para percebermos a real a dimensão deste culto na cidade do Rio de Janeiro.
Fundado em 1° de março de 1565, por volta das 12h, o Rio de Janeiro tem Netuno em Gêmeos em fechada conjunção o Ascendente, no mesmo signo. Peixes está no Meio do Céu, hospedando o Sol, a Lua, Plutão e Mercúrio. Desta forma, os quatro principais fatores da carta – Sol, Lua, Ascendente e Meio do Céu – conectam-se diretamente ao simbolismo de Peixes e de seu regente moderno, Netuno. Este planeta é significador das águas oceânicas, do meio líquido como expressão da indiferenciação e do infinito. Neste sentido, também representa o “oceano” do inconsciente, a sensibilidade psíquica, o ir e vir dos movimentos rítmicos – tanto das ondas do mar quanto da música e da dança – e a abertura para o impalpável, o invisível, o espiritual.
Iemanjá surge assim como a versão mestiça do princípio pisciano, também presente na cultura europeia sob a forma do ritual do batismo e do papel do sacerdote como um pescador de almas. Iemanjá é Netuno no Ascendente do Rio e, principalmente, a Lua em Peixes na carta da cidade.
Nos últimos anos, o ritual de Iemanjá vem sendo esvaziado de seu conteúdo religioso, reflexo da transformação da festa do Ano Novo num caça-níqueis para atrair turistas e patrocinadores. Os shows de pirotecnia e os exageros etílicos à beira-mar acabaram por transformar a praia de Copacabana numa espécie de gigantesca danceteria ao ar livre, tornando inviável a permanência dos cultos tradicionais. Hoje, o local dos cânticos e oferendas vem-se deslocando para as praias da Barra da Tijuca e do Recreio dos Bandeirantes, na periferia da cidade, e também antecipando-se no calendário: em vez da massa compacta reunida na virada do ano, os adeptos visitam as praias em pequenos grupos, ao longo da última quinzena de dezembro. Contudo, permanece o sentido básico de limpeza do ano que passou e recarregamento para o ano que chega. E permanece o sentido de ritual lunar, unindo pelo simbolismo comum as Nossas Senhoras do catolicismo e as divindades maternais da África.
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