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Edição 183 :: Setembro/2013 :: - |
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DO CÉU AOS GENESRoma: do estupro à civilização
Vasculhando antigos textos gregos, Alexey Dodsworth chega a uma desconcertante conclusão: o mapa que os astrólogos da antiguidade propõem para a fundação de Roma só seria possível dentro de uma concepção heliocêntrica. Teriam realmente os romanos consciência de que o Sol, e não a Terra, estava no centro do nosso sistema, quinze séculos antes de Copérnico? Este artigo é uma adaptação de trechos da dissertação de mestrado em Filosofia de Alexey Dodsworth Do Céu aos Genes: Transições epistêmicas, anomalias cosmológicas e suas inquietações éticas - uma interlocução foucaultiana. O trabalho está sendo submetido em setembro à banca da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e pode ser baixado na íntegra, em arquivo PDF, pelos leitores de Constelar. Para iniciar o download, basta clicar no ícone ao lado. Fundação de Roma: um enigma astrológicoSegundo a tradição, Roma foi fundada por Rômulo, após assassinar seu irmão gêmeo Remo. Ambos teriam origem semidivina, já que seriam filhos da vestal Réia Silvia (uma mortal), que fora estuprada pelo deus Marte. Considerando que não há um registro preciso sobre a fundação de Roma, alguns filósofos e astrólogos da antiguidade se debruçaram sobre a questão. Vários autores antigos relatam o ano da fundação como sendo algum momento entre 813 a.C. e 728 a.C. Plutarco afirma que a fundação de Roma se deu no trigésimo dia de um mês, durante um eclipse solar. Uma vez que Plutarco seguia o calendário egípcio, o trigésimo dia era sempre o da Lua Nova (quando, eventualmente, ocorrem eclipses solares). Uma longa tradição estabelece o aniversário de Roma como sendo no dia 21 de abril do calendário juliano, e oficialmente a data de fundação condiz com o ano sustentado por Varro: 21 de abril de 753 a.C. Entretanto, nesta data não houve eclipse algum, o que é incompatível com a informação fornecida por Plutarco. O "nono dia de Pharmuthi do terceiro ano da sexta Olimpíada" citado por Plutarco também é impossível, pois isso equivaleria ao dia 4 de abril de 754 a.C., quando também não houve eclipse algum. Ou seja: o texto de Plutarco sobre a fundação de Roma é contraditório em si mesmo, pois fala de um eclipse numa data na qual ele não pode ter ocorrido. Em De Divinatione, à parte seu tradicional ceticismo em relação a questões astrológicas, Cícero confere outras pistas: Mais uma vez: se importa sob qual aspecto do céu ou combinação de estrelas cada ser vivo nasce, então necessariamente as mesmas condições devem afetar também os seres inanimados: pode alguma declaração ser mais ridícula do que esta? Seja como for, o nosso bom amigo Lucius Tarutius Firmanus, mergulhado na tradição caldeia, fez um cálculo, baseado no pressuposto de que o aniversário de nossa cidade ocorreu na festa de Pales (hora na qual a tradição diz que foi fundada por Rômulo), e a partir deste cálculo Tarutius foi mais longe ao assegurar que Roma nasceu quando a Lua estava no signo de Libra e do fato de que, sem hesitação, profetizou seu destino. Que estupendo poder tem a ilusão! E foi também a data de nascimento da cidade sujeita à influência da Lua e das estrelas? A Lua em Libra constitui informação transmitida não apenas por Cícero, como também por Varro [imagem à direita]. Referindo-se aos cálculos efetuados por Tarutius, o compilador Solino (nascimento e morte no terceiro século da Era Cristã), descreve os supostos posicionamentos planetários do nascimento da cidade, segundo Varro. O texto a seguir é emblemático, por expor uma possível e surpreendente constatação: astrólogos antigos consideram o Sol como centro do sistema. Os negritos são meus: Segundo afirma Varro, diligentíssimo autor, Roma foi construída por Rômulo, cujos genitores foram Marte e Réia Silvia... Rômulo lançou as bases auspiciosas das muralhas aos dezoito anos de idade, entre a segunda e a terceira hora no décimo-primeiro dia de maio. Segundo Lucius Tarutius, prodigioso e famosíssimo matemático, Júpiter estava em Peixes, Saturno, Vênus, Marte e Mercúrio em Escorpião, o Sol em Touro e a Lua em Libra. Temos aqui dois problemas, e a confusão maior decorre do texto de Plutarco. Primeiro problema: se a fundação de Roma se deu com a Lua em Libra (segundo Varro e Cícero, referindo-se a Tarutius), é impossível que tenha ocorrido num eclipse na festa da Parilia. Para um eclipse ocorrer na Parilia, a Lua deveria obrigatoriamente ser nova, ou seja, estar nos signos de Áries ou Touro. Deste modo: 1. ou a Lua não estava em Libra; 2. ou não houve eclipse algum; 3. ou a fundação não ocorreu na Parilia. Saliente-se que apenas Plutarco se refere ao suposto eclipse da fundação da cidade. Estaria ele confundindo o fenômeno atribuído por Tarutius à concepção dos gêmeos semidivinos com o aniversário de Roma? Segundo problema: ainda que nem Varro e nem Cícero descrevam eclipse algum de acordo com os cálculos de Tarutius, ambos concordam com uma informação: a Lua estaria em Libra. Solinus cita claramente o que Varro teria informado a respeito das posições planetárias fornecidas por Tarutius. Ocorre que a configuração planetária exposta por Solinus é absolutamente impossível para a astrologia, se considerarmos a observação a partir da Terra (sistema ptolomaico, geocêntrico). Levando em conta a data apontada por Varro, 21 de abril de 753 a.C. entre 8 e 9 horas da manhã, teremos a seguinte configuração: Configuração astrológica para o suposto momento da fundação de Roma segundo o filósofo Varro: 21 de abril de 753 a.C., entre 8h e 9h. Fonte: (ASTRODATABANK) Os posicionamentos planetários simplesmente não batem com os descritos por Tarutius. Temos o Sol em Áries, a Lua em Aquário, Mercúrio e Júpiter em Áries, Vênus e Marte em Peixes e apenas Saturno – concordando com os cálculos do astrólogo - se encontra em Escorpião. Diversos pesquisadores contemporâneos tentam desvendar a incompatibilidade destas informações atribuindo o descritivo de Varro aos maus cálculos de Tarutius ou a uma má descrição feita por Solino. Realmente, é impossível que uma configuração astrológica apresente Sol em Touro e Mercúrio e Vênus em Escorpião, pelo seguinte fato conhecido pelo mais inexperiente estudioso da astrologia: em decorrência da proximidade de Mercúrio e Vênus ao Sol, estes dois planetas sempre estarão necessariamente muito próximos do astro-rei. Para um Sol em Touro, Mercúrio só poderia estar nos signos de Áries, Touro ou Gêmeos e em nenhum signo mais. Do mesmo modo, Vênus só poderia estar nos signos de Peixes, Áries, Touro, Gêmeos ou Câncer. Quaisquer outros signos seriam impossíveis. Erros de cálculo astrológico eram comuns na antiguidade, e é bastante compreensível que mesmo um ótimo astrólogo da época afirme, por exemplo, que o planeta Mercúrio se encontrava em Gêmeos, quando na verdade se encontrava em Câncer. Deslizes de graus capazes de conduzir ao signo imediatamente posterior ou anterior ao real eram comuns e justificáveis, considerando-se o instrumental impreciso da época. Mas "Sol em Touro e Mercúrio em Escorpião" não é mera imprecisão – é absurdo, pois envolve que os dois astros estejam em oposição, algo inadmissível para qualquer observador terrestre. Bastam poucas lições de Astronomia básica para saber que Mercúrio sempre acompanha o Sol, jamais podendo se opor ao astro-rei. Não seria caso de "mau cálculo", portanto. Astrologicamente falando e nos desfazendo de eufemismos, os dados de Tarutius seriam uma verdadeira aberração, pois não existe "Sol em Touro, Vênus e Mercúrio em Escorpião", e um erro de tal magnitude seria impressionante para um principiante em Astrologia, ainda mais para um matemático da reputação de Tarutius, capaz de identificar um eclipse ocorrido muitos séculos antes. O erro estaria no relato de Solino? Ou talvez no relato de Varro? A maioria dos pesquisadores aposta nesta teoria de distorção de comunicação: um diz que o outro disse, mas ninguém dispõe de um texto escrito pelo próprio Tarutius . De fato, a distorção informativa é uma possibilidade. Todavia, se mudarmos a perspectiva do observador e considerarmos o Sol como centro do sistema, e não a Terra, chegaremos a uma surpreendente constatação ilustrada pela figura a seguir: Configuração planetária heliocêntrica para o suposto nascimento de Roma: 21 de abril de 753 a.C., entre 8h e 9h. Fonte: (ASTRODATABANK) Nota - Plínio, O Velho (23-79) menciona a existência de Tarutius no livro I da “Historia Naturalis”, dizendo que ele escreveu em grego sobre os corpos celestes (“L. Tarutius qui Graece de astris scripsit”). Esta é a provavelmente a razão da inexistência das obras deste astrólogo: os gregos não suportavam (e, consequentemente, não preservavam) textos escritos por romanos em língua grega. O que se perdeu com a não preservação da obra de Tarutius é inimaginável. Teria ele exposto claramente que era o Sol o centro do sistema, e não a Terra? Considerando a perspectiva heliocêntrica (o Sol no centro), os resultados são quase idênticos aos apontados por Tarutius: Mercúrio, Vênus e Saturno estão em Escorpião; a Lua está em Libra; Júpiter, por meros nove graus, não está em Peixes (encontra-se nos primeiros graus de Áries). Quanto ao Sol, sua posição sideral era realmente Touro. Considerando o deslocamento de perspectiva que ora proponho, isto implicaria em Tarutius ser um astrólogo muito melhor do que se dizia, uma vez que teria tido a capacidade de identificar o movimento das constelações, algo supostamente impensável para a época (assumiam-se as estrelas como fixas na abóbada celeste). A única incompatibilidade séria, aqui, é a posição do planeta Marte: encontrava-se em Aquário, e não em Escorpião. Todavia, é digno de nota que a estrela Antares – corriqueiramente confundida com Marte, de onde deriva seu nome "anti Ares", "rival de Marte" ou "similar a Marte" – se encontrava em Escorpião, colada a Vênus. Se considerarmos que houve uma distorção de comunicação, um mal entendido envolvendo Marte e Antares, ao que tudo indica Tarutius e Varro consideravam o Sol como centro do sistema, e não a Terra. Afinal, o texto é de Solinus citando o que Varro disse sobre Tarutius, e o astrólogo pode muito bem ter dito algo como “o astro cuja natureza é de Marte”, como fazem os astrólogos até hoje quando se referem a Antares.
Quadro das posições planetárias de acordo com o exposto por Tarutius para a fundação de Roma, em comparação com as posições ptolomaicas e as posições heliocêntricas. Em vermelho, destaco as incompatibilidades aberrantes, o que evidencia as posições heliocêntricas como bem mais compatíveis com as descritas por Tarutius. Defendo, portanto, que a carta astrológica descrita por Tarutius e Varro para o nascimento de Roma é compatível com o sistema copernicano, que viria a ser estabelecido muitos séculos depois, ou seja, refiro-me aqui a astrólogos que eram "copernicanos" muitos séculos antes de Copérnico vir a existir. Consequentemente, para estes dois astrólogos antigos, a Terra era considerada um planeta como outro qualquer a girar em torno do Sol. A astrologia ptolomaica, portanto, ao considerar nosso planeta como centro, não constituía unanimidade. Foi tão-somente um sistema que passou a ter dominância no início da Era Cristã, encontrando suporte na metafísica aristotélica e persistindo por séculos. Admitir o geocentrismo era mais confortável do que admitir o heliocentrismo, tanto numa perspectiva teológica quanto matemática . Nota a - Vale ressaltar que Tarutius não estaria isolado em seu suposto heliocentrismo. Filolau de Crótona, nascido no século 5 a.C., foi um filósofo pré-socrático de corrente pitagórica que estabeleceu uma cosmologia assaz curiosa, na qual a Terra era considerada um planeta que orbitava – com todos os outros, além do Sol e de um estranho corpo celeste chamado Antiterra – ao redor de um “fogo central”. Este “fogo central” pode ser interpretado como o centro galáctico. Ao que tudo indica, Filolau foi o primeiro filósofo a atribuir movimento ao planeta Terra. Nota b - O heliocentrismo é matematicamente mais complexo que o geocentrismo. As posições geocêntricas demandam apenas observação, diferente das heliocêntricas, que exigem pleno domínio da matemática. A cidade fundada por Rômulo, monstro humano-divino, a criança enjeitada e exposta aos elementos, já anunciava em sua assinatura astrológica estabelecida por Tarutius: não somos o centro do Universo. E, nesta dinâmica de desconstruções, está sempre Marte como importante significante simbólico. Lembremo-nos que foi graças às observações do planeta vermelho que Kepler rompeu definitivamente com a teoria do movimento circular das esferas celestes, concedendo-nos nova cidadania cósmica: uma existência onde a anomalia finalmente era admitida. Por sua vez foi o Marte mítico [imagem à esquerda] - centenas de anos antes de Kepler - o responsável pelo nascimento da "criança anormal", mista e enjeitada, fruto do estupro e da conspurcação da pureza (Réia Silvia, a virgem vestal). A mesma criança que – ironia das ironias – viria a fundar a cidade-mãe responsável pelo Direito que tanta importância teve na construção da Europa. Roma é, portanto, mãe da civilização e ao mesmo tempo filha do enjeitado, do fruto do estupro. O Marte de Rômulo, símbolo clássico da discórdia, da guerra, mas também do crescimento e da primavera, é também – na analogia renascentista - o Marte de Kepler e da destruição do círculo. Sempre Marte, a entidade que anuncia nas histórias variadas nas quais se insere: nada mais será como antes. Inevitável teorizar: seria esta a sequência natural da mitologia, caso tivesse sido continuada pelos gregos e romanos? Marte como senhor da humanidade? Do mesmo modo que Saturno destronou Ouranós, o Céu, e Júpiter por sua vez destronou Saturno, caberia a Marte – enfim – destronar Júpiter. A sequência do mais distante para o mais próximo a nós, afinal, parece servir de chave e promessa de deslocamento simbólico: Urano – Saturno – Júpiter – Marte – Terra. Leia também, do mesmo autor: Rômulo e Remo, as crianças abandonadas da capital do mundo Outros artigos de Alexey Dodsworth. Comente este artigo |Leia comentários de outros leitores |
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