Revista Constelar Revista Constelar

 

 

 
 
 
MILTON NASCIMENTO & FERNANDO BRANT

Bola de meia, bola de gude

Carlos Hollanda

 

Lançada no final dos anos 70, Bola de meia, bola de gude fez sucesso em diversas gravações, como a de Flávio Venturini no 14 Bis e outros membros do famoso "Clube da Esquina". Carlos Hollanda explica porque esta música calou fundo no coração de muita gente.

O eixo das casas 4 e 10 ou Câncer-Capricórnio

Bola de Meia, bola de gude é, por excelência, uma música que evoca as contradições entre o mundo adulto e a infância, mas ressalta a importância da integração desse eu infantil que todos trazemos, imorredouro, dentro de todos nós.

Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem prá me dar a mão

Notem bem o que diz a letra: "toda vez que o adulto balança", isto é, perde a estabilidade (leia-se emocional), "ele (um menino) vem pra me dar a mão", isto é, para restaurar essa estabilidade e esse vínculo com o centro de si mesmo. Trata-se da própria dicotomia entre o simbolismo da infância (Câncer-casa 4) ou, melhor exemplificando, das origens, do cerne, do centro irradiador, fornecendo as respostas para os dilemas adultos de Capricórnio ou da décima casa. A resposta às nossas incertezas, falta de fé e aos nossos temores do futuro está no espírito infantil? Em parte sim, mas a casa 4 não se refere só à infância. Trata-se das profundezas.

"Toda vez que o adulto balança" e o menino "dá a mão" é uma metáfora que também pode ser interpretada como uma incursão no cerne de si mesmo durante uma crise pessoal. Essa crise pode ser a perda de um emprego, da reputação, as pressões da sociedade e suas expectativas em torno de nossa conduta. Todos esses atributos são relativos ao simbolismo de Capricórnio e da casa 10, guardadas as devidas diferenças entre o signo e a casa. Muitas vezes a solução está em resgatar aquela simplicidade infantil que enxerga o mundo como algo bem grande e passível de ser experimentado, mas sem deixar de crer que ele nos poderá nutrir, se assim for preciso, mesmo que não tenhamos condições de produzirmos, nós próprios, o sustento de que necessitamos. Muitas vezes é preciso ter fé, uma fé que no caso do simbolismo acima é como a exaltação de Júpiter em Câncer, que diz algo mais ou menos como: "há uma abundância cósmica e eu posso confiar no universo, pois nada me faltará".

Há um passado
No meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão

O passado no presente é a simultaneidade das idades no ser humano. Junguianamente podemos chamá-las de puer e senex, a criança e o velho, em torno da consciência presente. Freud preferiu dizer que eram id e superego. Embora cada uma dessas classificações conceituais tenha uma descrição e um significado particular, o puer e o id, assim como o senex e o superego são assemelhados em certo grau, pois mantêm-se representando extremos de idade e fatores da consciência que permanecem. Em todas as atitudes humanas não há como separar uma coisa da outra. Em tudo o que fazemos há um pouco de velhice e de infância. O problema é que a "bruxa", isto é, o medo do futuro, as condenações da sociedade em relação ao comportamento classificado como infantil em pessoas de maior idade, desfavorece a percepção e integração da criança interior em cada ato e reduz a intensidade do prazer de estar vivo, de sentir claramente quem e o que se é, de se entregar de corpo e alma àquilo que se faz ou pensa. Mas é o menino, a criança interior, quem dá a mão, quem, ao fazermos nossa viagem ao fundo de nós mesmos (ou ao Fundo do Céu do mapa natal), revela o que verdadeiramente desejamos.

Fundir a criança com o velho não é tornar o velho menos responsável. Muito pelo contrário. É torná-lo compassivo e menos rígido em suas convicções. A responsabilidade vem principalmente da flexibilidade com que lidamos com a realidade, entendendo que somos seres limitados e que sempre e sempre haverá algo novo para experimentarmos. Sem o puer, a vida é um mar de preconceitos, de idéias cristalizadas, de percepções de vida repetitivas e desprovidas de criatividade. O mundo adulto de hoje condena aqueles que preferem viver seus próprios mitos pessoais (aqui já extrapolando a casa 4 para a casa 5) e deixam de seguir aquilo que os pais ponderados identificam como as melhores vias de acesso à segurança e à estabilidade. Quantos executivos gostariam de, na verdade, estar trabalhando como biólogos? Quantos militares gostariam de ser músicos? Talvez nesses casos a responsabilidade tenha, tal qual Cronos, engolido seus filhos criativos, não dando crédito às suas possibilidades, nem que fosse apenas como atividade paralela. O resultado, porém, pode ser esse Cronos-senex inteiramente responsável sendo atirado no tártaro das profundezas da casa 4, regredindo, inconscientemente, a um estado infantil ao reagir irracionalmente a desafios à improvização e à criatividade.

A sombria solidão de quem esquece a criança interior


Anterior | Próxima | Sumário desta edição | Índices

© 1998-2004 Terra do Juremá Comunicação Ltda.