Um
olhar brasileiro em Astrologia
Edição 172 :: Outubro/2012 |
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ASTROLOGIA E CULTURA BRASILEIRARio São Francisco, o Velho Chico
Um rio pode ter mapa astrológico? O São Francisco, principal rio totalmente brasileiro, tem mapa de batismo. Nele, estão indicados até mesmo as cachoeiras, o trecho navegável e a incrível história das carrancas, uma tradição que só existe no Velho Chico. Foz do São Francisco, entre Alagoas e Sergipe. Entre 1500 e 1530, Portugal não chegou a desenvolver nenhum esforço sistemático para ocupar sua colônia no Novo Mundo. Nos primeiros anos, limitou-se a enviar ao Brasil algumas expedições com dupla finalidade: de um lado, explorar o território, com o objetivo de localizar e mapear as possíveis riquezas existentes; de outro, proteger a costa contra eventuais incursões de corsários espanhóis e de outras nacionalidades. A primeira expedição parte de Lisboa em maio de 1501, tendo como comandante Gonçalo Coelho e trazendo a bordo, na condição de cosmógrafo, o piloto italiano Américo Vespúcio. É Vespúcio quem descobre, em 4 de outubro daquele ano, a foz de um enorme rio, na atual fronteira entre Alagoas e Sergipe. E como fosse o dia dedicado ao santo de Assis, Vespúcio batiza o rio com o nome de São Francisco. Este evento não marca, logicamente, o nascimento do rio, mas sim seu batismo e inclusão na geografia do Brasil colonial. É o primeiro contato do colonizador com o Velho Chico, e a carta deste primeiro encontro dá algumas pistas sobre o papel que o São Francisco iria representar nos séculos subsequentes. Não se tem notícia da hora em que a descoberta de Vespúcio ocorreu, mas não há dúvidas de que tenha sido à luz do dia. Qualquer que seja o horário considerado entre o alvorecer e o crepúsculo, a Lua estará sempre em Câncer e formando quadratura com o Sol entre 20° e 21° de Libra. O Sol encontra-se também em conjunção com Mercúrio e em quadratura com Netuno em Capricórnio, sendo que a quadratura destes dois últimos planetas (Netuno-Mercúrio) é o aspecto mais exato da carta. Descoberta da foz do São Francisco pelos portugueses e batismo do rio - 4.10.1501 - carta solar calculada para às 12h. Libra é o signo do mediador, do que concilia os opostos, do que estabelece o equilíbrio entre os desiguais. O São Francisco cumpre exatamente esta função: elo de ligação interiorana entre o Sudeste e o Nordeste, regiões que guardam entre si profundas diferenças e que, não fosse o canal de comunicação natural ofertado pelo rio, não teriam podido estabelecer, ao longo do período colonial, laços de integração econômica e cultural. O São Francisco nasce na serra da Canastra, em Minas Gerais, corta todo o estado da Bahia em sua porção mais seca e chega ao mar na divisa entre Alagoas e Sergipe. Temos aí o simbolismo de Netuno em Capricórnio (as águas das montanhas mineiras, as nascentes) e da Lua em Câncer (os baixios úmidos da Zona da Mata nordestina, o litoral – a mesma Lua de Salvador) mediados pela presença do Sol em Libra a aspectar estes dois planetas. Como os aspectos são quadraturas, e como estas envolvem também Mercúrio (a comunicação e o transporte), o mapa explica também porque a navegação não é possível em toda a extensão do rio[1]. Quadraturas simbolizam obstáculos, no caso as cachoeiras, como a de Paulo Afonso, e os estreitos e corredeiras, como os que existem rio acima, além de Pirapora. A partir de Pirapora (foto) não era mais possível subir o rio em função dos estreitos. Simbolicamente, está aí uma das quadraturas do mapa da descoberta do São Francisco. Mercúrio em Libra representa, pois, o trecho navegável, o amplo caminho de água trilhado pelos “gaiolas” entre a mineira Pirapora e a baiana Juazeiro, já na fronteira de Pernambuco. Libra é, por extensão, o signo regente de todo a região do médio São Francisco, abrangendo cidades como Bom Jesus da Lapa, Ibotirama, Xique-Xique, Pilão Arcado e Juazeiro, na Bahia, além de Pirapora e Januária, em Minas, e Petrolina, em Pernambuco. Sendo Libra um signo de Ar, elemento relacionado às trocas e ao refinamento cultural, o médio São Francisco viu sedimentar-se aos poucos uma cultura popular rica e heterogênea, onde se mesclam elementos místicos e fantásticos (quadraturas com Netuno) e um forte apego ao passado (Lua em Câncer) que faz surgir, aqui e ali, reminiscências da Europa medieval em pleno sertão. É neste contexto que vale a pena dar uma olhadinha no fenômeno das carrancas. O uso de figuras de proa em embarcações vem da mais remota antigüidade. Egípcios e fenícios difundiram esta prática pelo Mediterrâneo, “onde uma de suas finalidades foi indicar o Estado a que pertencia a embarcação”[2]. Entre os gregos e romanos, estas figuras deixaram de ser exclusivamente zoomorfas (em formas de animais) para adquirirem cada vez mais finalidade decorativa. A partir da Idade Média, as figuras de proa mais conhecidas são oriundas dos drakkars, barcos de guerra vikings. Representavam animais fantásticos, assemelhando-se mais comumente a dragões, e também a serpentes e cavalos.[3] As figuras de proa voltam à moda no século XVI e permanecem em uso até o século passado, sempre com finalidade decorativa. Perdem importância com o advento da navegação a vapor e com o novo estilo de proa vertical. Segundo Paulo Pardal, nos tempos modernos, as únicas embarcações populares de povos ocidentais que apresentaram figuras de proa de forma generalizada foram as barcas do Rio São Francisco. A origem das carrancas do São Francisco deve ter sido a imitação da decoração de navios de alto-mar, vistos nas capitais da Província da Bahia e do país, pelos pequenos nobres e fazendeiros do São Francisco, em suas viagens à civilização. Devido ao isolamento em que viviam os habitantes do médio São Francisco, foi criado em tipo de figura de proa inédito em todo o mundo: peças de olhos esbugalhados, misto de homem, com suas sobrancelhas arqueadas, e de animal, com sua expressão feroz e sua cabeleira tipo juba leonina. O barqueiro Miguel Italiano, rico comerciante em Juazeiro, em 1825, foi proprietário da primeira barca do São Francisco a utilizar "figura de proa" – "SERRANA" (busto de uma mulher feito de louça). (...) A partir daí, surgem as "cabeças de cavalo", os "chifres de boi", e mais tarde as Carrancas do São Francisco. (...) As primeiras carrancas devem datar de 1875-1880. Como toda manifestação da cultura coletiva, as carrancas carregam conteúdos do imaginário popular, exteriorizam elementos míticos e simbólicos e, conseqüentemente, podem ser analisadas do ponto de vista astrológico. Em primeiro lugar, carrancas são representações em madeira da rostos assustadores. Cabeças e rostos são regidos por Áries e Marte, assim como a própria arte da escultura em madeira. Proas, igualmente, são assunto ariano: é a parte da embarcação que vem na frente, que encabeça o restante. Do ponto de vista funcional, as carrancas têm papel decorativo (Vênus), mas não de forma exclusiva: Clarival Valladares foi o primeiro historiador de arte que analisou a problemática das carrancas, em artigo de 08.03.1959 no Diário de Notícias de Salvador, "Duendes do São Francisco" (...). O que não se conhece ainda é a verdadeira função da carranca – mágica ou ornamental. Clarival consagrou às carrancas o caráter apotropaico: o poder de afastar malefícios. Francisco Guarany citou que as carrancas protegiam os barqueiros contra animais do rio, especialmente o jacaré e o surubim. Quanto ao motivo original das carrancas, mais lógico poderia ser o que diz W. Lins. "Acredita-se que os donos de barca tenham adotado o uso de figuras de proa como meio de atrair a curiosidade da gente das fazendas sobre as embarcações e, assim aumentar as possibilidades de negócios". As carrancas (...) se traduzem como poderosos monstros que espantam os maus espíritos das águas, principalmente o lendário "Negro D'água", conhecido pelos beiradeiros como o "negro traquino" virador de canoas. Há uma lenda, embora pouco difundida: um padre de Paulo Afonso, acompanhado de uma bela índia por quem se apaixona, desce o rio, quando o barco entra numa corredeira e bate nas pedras, morrendo os dois. Daí batizam aquela corredeira de "Cachoeira de Paulo Afonso". Só depois da morte do padre Paulo Afonso, é que as barcas do São Francisco passam a conduzir uma carranca na proa, sob a crença de que a "figura de proa" avisa quando há perigo, gemendo três vezes. Para os barranqueiros do São Francisco a carranca é um ser poderoso que dá sorte e afugenta os maus espíritos das águas. Os barqueiros mais antigos confirmam que, quando há perigo de afundar a embarcação, a carranca avisa, com três gemidos. É claro que, por trás dos usos mágicos da carranca, reside a crença de que o São Francisco é um rio perigoso, traiçoeiro, que esconde seres míticos e maléficos. Tal crença, aliás, é observada em todas as culturas e pode ser associada a Escorpião. Este, dos três signos do elemento Água, é o que expressa sua natureza fixa, o que não é sinônimo de paralisia ou estagnação: a fixidez é o estado de máxima concentração do poder do elemento, o que, no caso das águas, traduz-se pela violência das cachoeiras e corredeiras, pelos redemoinhos e pelas correntes invisíveis na parte funda dos rios. É a água submetida à regência de Marte e Plutão, agressiva e insondável, tumultuosa e mortal. Cachoeira de Paulo Afonso, no norte da Bahia. O trecho encachoeirado Observando de novo a carta da descoberta do São Francisco, vemos que Vênus, regente de Libra e dispositora do Sol e de Mercúrio, encontra-se exatamente em Escorpião, signo que também abriga Plutão em domicílio. Para conjurar o perigo, os barqueiros recorrem à carranca investida de poderes de guardiã e à qual se atribui a capacidade de reconhecer os perigos e avisar os barqueiros com três gemidos, para protegê-los. A carranca tem, portanto, uma natureza benigna, podendo ser associada ao planeta considerado pelos clássicos como “o grande benéfico”, Júpiter. Na carta, Júpiter encontra-se em Touro e em oposição a Vênus, simbolizando a proteção contra o mal (Vênus exilada em Escorpião, domicílio do maléfico Marte e do senhor dos abismos, Plutão). A carranca é uma figura grande e pesada (Júpiter), de aspecto animalizado (Touro), que supostamente emite sons (Touro rege a voz) e que se liga ao corpo do navio por um longo pescoço (parte do corpo também regida por Touro). Como o dispositor deste Júpiter é a própria Vênus em Escorpião, a carranca também compartilha da aparência do mal que pretende combater, o que explica sua expressão assustadora. Quando as carrancas começam a ser utilizadas, entre 1875 e 1880, Netuno, planeta do misticismo e das fantasias da imaginação, faz sua entrada em Touro, ativando a oposição Júpiter-Vênus. A configuração remete à arte e ao sentimento religioso, latente nesta manifestação cultural. Acresce que os aspectos presentes no mapa-matriz, envolvendo Sol, Netuno e Lua, já indicavam que o rio São Francisco seria um fator de estímulo para o surgimento de criações imaginativas, fantásticas, mágicas e carregadas de ancestralidade. O carranqueiro Francisco GuaranyFrancisco Guarany foi o mais famoso e mais prolífico dos escultores primitivos de carrancas. Saíram de suas mãos dois terços das peças genuínas catalogadas pelo pesquisador Paulo Pardal. Segundo Guarany, seu bisavô, José Dy Lafuente, espanhol de Barcelona, era um jesuíta ou frade de um convento em Salvador, de onde teve que fugir por ocasião de uma revolução, ou talvez da perseguição que Pombal moveu aos jesuítas. Ocultou-se então na casa de uma negra africana de Moçambique – Biquiba – com quem se uniu e refugiou-se no interior da Bahia, (...) às margens do São Francisco. Daquela união nasceu Plácido Biquiba Dy Lafuente (...). O mais velho dos filhos de Plácido (...) casou-se aos vinte e um anos, cerca de 1865 (evitando o recrutamento dos solteiros para a guerra do Paraguai), com Marcelina do Espírito Santo, neta de uma índia de Paraguaçu (...). Francisco, último dos seis filhos de Cornélio, foi apelidado de Guarany, por ser bisneto de índia. Filho de um construtor de barcas, Francisco começou em 1899 trabalhando como imaginário (produtor de imagens de santos). Como a atividade não era rentável, passou a trabalhar como marceneiro e carpinteiro. Sua primeira figura de proa foi um busto de negro ou caboclo, produzida em 1901. Daí até o início dos anos quarenta, quando a construção das barcas é paralisada, produziu, provavelmente, mais de oitenta carrancas. Normalmente, trabalhava a peça num único tronco, sem emendas. O elemento plástico mais característico da escultura de Guarany é o tratamento que dispensa à cabeleira das carrancas, espessa ou em relevo acentuado, abundante, cobrindo quase todo o pescoço. Contudo, Francisco Guarany só é descoberto pelo mundo das artes em meados da década de cinqüenta, quando os colecionadores começam a interessar-se por suas peças. O reconhecimento definitivo vem nos anos sessenta e setenta. Francisco morreu em 5 de maio de 1985, aos 103 anos, reconhecido internacionalmente como o maior escultor primitivo brasileiro de todos os tempos. Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany nasceu em Santa Maria da Vitória, Bahia, no dia 2 de abril de 1882. Sua carta solar apresenta o Sol em Áries em quadratura com Marte em Câncer. Áries e Marte são os regentes da arte da escultura em madeira. Vênus também está em Áries, indicando um padrão estético rústico e vigoroso, e é dispositora de quatro planetas em Touro: Saturno conjunto a Netuno (a forma física corporificando a imaginação) e Júpiter conjunto a Plutão (a atração por formas capazes de expressar a idéia de força, poder e grandeza). Entre os mapas de Francisco Guarany e o da descoberta do Rio São Francisco, há quatro interaspectos significativos e uma reiteração: a) o Marte de Guarany faz oposição a Netuno e quadratura a Mercúrio do São Francisco: Guarany é um fator de ativação do potencial artístico da cultura regional; b) Vênus de Guarany (a arte) faz oposição ao Sol (a consciência) do São Francisco; c) os dois Plutões estão em oposição quase exata; Júpiter de Guarany está em oposição ao Plutão do Velho Chico; Júpiter, nas duas cartas, está em Touro. Este conjunto de indicações é o mais importante a considerar, pois reitera a importância do signo de Touro (a valorização da forma sólida, da arte pesada e imponente) e traz à tona a força do elemento arcaico, primitivo (Plutão), relacionado a representações culturais profundamente enraizadas na comunidade. A biografia de Guarany mostra-o como um típico produto do caldeamento étnico do médio São Francisco. Descendente do sacerdote, da negra escrava e da índia, carrega no sangue e no background cultural todos os conflitos civilizatórios da região. Produz uma arte visceral, onde se misturam a vitalidade e a força primitiva dos dois primeiros signos do zodíaco, exatamente os mesmos que simbolizam os dois elementos constitutivos da carranca: Áries, a cabeça, e Touro, o pescoço. [1] Em outras palavras: o mapa não explica porque o rio tem cachoeiras (o rio, como acidente natural, é muito anterior ao seu batismo, naturalmente). Mas expressa os obstáculos que o colonizador encontrou na ocupação do vale do São Francisco, e como lidou com eles. A carta da descoberta ou do batismo de um acidente geográfico é a expressão astrológica de um fenômeno no plano político-cultural e sócio-econômico, jamais no plano da geografia física. [2] PARDAL, Paulo. Carrancas do São Francisco. 1981. [3] Esta e as outras citações deste capítulo são oriundas de material de divulgação cultural das Centrais Elétricas do São Francisco, que se baseia, por sua vez, em duas obras: PARDAL, Paulo. Carrancas do São Francisco. 1981, e SILVA, Wilson Dias da. O Velho Chico: sua vida, suas lendas e sua história. 1985. Outros artigos de Fernando Fernandes. |
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