Prosa do Observatório
AUTOR: Julio Cortázar
Editora Perspectiva - 116 páginas - 1985
"Essas máquinas
não foram erigidas apenas para medir roteiros astrais, domesticar
tanta distância insolente."
"Enguias, sultão,
estrelas, professor da Academia de Ciências: é de outra
maneira, de outro ponto de partida, para outra coisa que se deve
emplumar e lançar a flecha da pergunta."
Este livro pode ser definido (se tiver alguma definição
que lhe caiba) como um testemunho poético, irônico
e perplexo de como a Ciência tenta explicar toda a saga que
envolve o nascimento, a reprodução e a morte das enguias,
da atitude da inteligência humana quando se depara com um
universo tão inexplicável como este, tanto quanto
o é a própria dimensão celeste - que passa
a ser o seu contraponto menos gratuito.
Aliás, para o autor, tanto as enguias que
habitam o leito das profundidades marítimas quanto as estrelas
que se distribuem no céu, sob a especulação
impávida de um sultão indiano, estão submetidas
a uma mesma pulsação que une, de maneira insuspeitada,
estes dois universos, estes dois continentes, como se eles fossem
- de acordo com uma de suas surpreendentes analogias - os dois lados
de um imenso pulmão cósmico.
Este testemunho passa, a partir de certo momento,
a ter um endereço certo: os acadêmicos e os cientistas,
a quem se dirige numa espécie de carta onde descreve que,
para além da tentativa da Ciência em explicar as enguias
e para além do sultão que tenta decifrar o enigma
que lhe impõe o infinito cósmico, paira, soberana,
a poesia - a sua poesia, que nos encanta e que se derrama sobre
nós como uma hipnótica literatura.
Isto prova que, se Julio Cortázar não
é um verdadeiro artífice das palavras, é, no
mínimo, um autêntico guerreiro do absoluto que luta
contra a pequenez dos conhecimentos e saberes humanos frente ao
componente mais inefável e incompreensível da nossa
existência - mas que lhe dá consistência, nobreza
e magnitude.
Compreender a existência humana sem que se
abarque este componente é jamais compreender a unidade transcendente
e viver sob os desígnios do absurdo.
Confira abaixo, em suas próprias palavras,
os trechos recolhidos do livro. E veja se não é com
ele que ficou o trunfo:
1
O professor Maurice Fontaine, da Academia de Ciências da França,
pensa que o ímã da água doce que, desesperadamente,
atrai as enguias, obrigando-as a suicidar-se aos milhões
nas eclusas e nas redes para que o resto passe e chegue, nasce de
uma reação de seu sistema neuro-endócrino em
face do adelgaçamento e da desidratação que
acompanha a metamorfose dos leptocéfalos em jovens enguias.
Bela é a ciência, doces as palavras que seguem o percurso
das enguiazinhas e nos explicam a sua saga, belas e hipnóticas
como os terraços prateados de Jaipur onde um astrônomo
manejou em seu dia um vocabulário igualmente belo e doce
para conjurar o inominável e vertê-lo em pergaminhos
tranquilizadores, herança para a espécie, lição
de escola, barbitúrico de insônias essenciais.
2
Não é de difuso panteísmo que falamos, nem
de dissolução no mistério: os astros são
mensuráveis, as rampas de Jaipur guardam ainda a marca dos
buris matemáticos, jaulas de abstração e entendimento.
[...] Que Dama Ciência em seu jardim passeie, cante e borde,
bela é a sua figura e necessária a sua roca teleguiada
e seu alaúde eletrônico; não somos os beócios
do século, os brontossauros estão mortos e enterrados.
Mas então a gente sai a vagar de noite, como sem dúvida
também tantos servidores de Dama Ciência, e se a gente
vive de verdade, se a noite e a respiração e o pensamento
enlaçam essas malhas que tanta definição separa,
pode ocorrer que entremos nos parques de Jaipur ou de Delhi, ou
que no coração de Saint-Germain-des-Prés consigamos
roçar outro perfil do homem.
3
... Jai Singh sobe os degraus de mármore e faz frente ao
furacão dos astros; algo mais forte que os seus lanceiros
e mais sutil que seus eunucos o impele no fundo da noite a interrogar
o céu como quem afunda o rosto num formigueiro de metódica
raiva.
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