|
Hoje
fui me despedir de meu amigo
|
Valdenir Benedetti |
|
A morte física não me impressiona tanto,
talvez muitos velórios domésticos, quando eu era criança,
tenham me acostumado com isso - coisa de Escorpião. Os mortos
são serenos - e hoje eu vi um morto sereno. Em paz, como
há um bom tempo eu não o via. Em paz.
No silêncio que esse lugar de cortejar os corpos
mortos nos impõe, minha mente viajou, mergulhou no túnel
do tempo - e eu experimentei, por alguns instantes, a sensação
do momento em que, pela primeira vez, entrei no "espaço
de ficar" de meu velho amigo.
Um pequeno escritório, paredes amareladas
por milhões de cigarros fumados, ainda, naquela época,
compulsivamente. Galaxy slims derramando-se sobre um largo cinzeiro,
boa parte sobre a mesa - que o cinzeiro vivia cheio. Um dia, por
exigência de seus pulmões fragilizados, deixou os cigarros,
radicalmente. Deixou um amigo de 50 anos, o que não é
fácil... E jamais lhe ouvi uma queixa sequer....
E livros, infinitos livros, pilhas e pilhas de livros
esparramados por todo aposento, as estantes transbordando, a mesa
lotada de livros e peças de computador, impressoras, disquetes
sem nome contendo misteriosos e intangíveis programas...
Impossível achar qualquer coisa que procurássemos
por ali - bem, talvez alguma coisa que não estivéssemos
procurando, pudesse ali ser encontrada. Mas o Sérgio sabia
exatamente onde estava cada partícula daquele caos, coisas
da física quântica que só um netuniano é
capaz de entender. Administrar partículas e caos, coisa de
físico mesmo...
Mas o que mais chamava a atenção, naquele
lugar, era o próprio Dr. Sérgio. Encurvado sobre o
teclado, catando um milho sofrível, sempre em frente ao monitor
do computador (aliás geralmente programado com cores berrantes
tipo mochila de surfista, roxo, verde limão, por aí...)
Ele gostava assim e pronto. Essa é a imagem mais forte que
vai ficar dele, olhando assim de lado, o formato do Saturno, a firmeza
do Saturno. Não adiantava tentar explicar um jeito mais fácil
de formatar um texto ou uma planilha. Ele ouvia com atenção
e fazia exatamente do jeito dele. "Eu gosto assim", dizia.
Muitas vezes estive nesse lugar, e muitas vezes me
veio à mente O Castelo de Franz Kafka, um lugar com prateleiras
de altura e comprimento infinitos, recheadas de papéis, onde
o Sr. K., agrimensor contratado para fazer algum trabalho no território
do castelo, imaginava que estavam suas ordens de serviço,
que jamais foram encontradas...
Outra compreensão que me aflorou, durante
as muitas noites que passamos copiando programas e batendo papo,
e discorrendo sobre astrologia, mapas, programas, astrologia, mapas,
medicina, programas - bem antes da existência da Internet
e dos pentiae... e depois também - é que aquele lugar,
com sua infinidade absurda de livros caoticamente organizados, e
aquele Sr. Saturno imperando, totalmente domiciliado, eram a reprodução,
a própria materialização da mente do astrólogo.
|
Creio que é exatamente assim, a cabeça da maioria
de nós. Uma multidão de idéias, informações,
conhecimentos, sentimentos espalhados pelo chão da
mente, pelas prateleiras da mente, com uma esperança
distante de que, um dia, a gente consiga organizar tudo o
que fomos e o que estivemos avidamente absorvendo em nossa
caminhada, com a ilusão de que, talvez, todo o conteúdo
daqueles milhares de livros, em princípio inconsciente,
se torne um dia totalmente consciente... quem sabe...
Se tiver que ser pintada, um dia, a mente do astrólogo,
tem que ser daquele jeito. Pra sempre vou me lembrar daquilo...
|
O Sérgio tinha um prazer imenso em copiar
programas. Não era por causa da grana, que ele comprava os
programas originais. Era pra dar para os amigos, compartilhar. A
maior besteira era dar um programa pra ele e dizer para não
copiar para ninguém... doce ilusão...
Creio que, com aquele Saturno determinando o projeto
de vida dele, tão poderoso e inexorável em sua rigidez
- sua vida muito disciplinada, um estudioso metódico e rígido,
e profissionalmente também assim, impecável por tudo
que eu sei - precisava de um escape, de uma válvula, onde
o Netuno, além da intuição, afinando-se com
a vida como um gesto, se expressasse... Alguma mínima transgressão,
um pouquinho de "malandragem do bem", que não prejudicasse
jamais quem quer que fosse, que servisse como código aquariano
do "compartilhar" aquilo que a todos deveria pertencer...
Nos divertimos à beça com isso. E aprendemos muito
também: sobre programas, sobre amizade, sobre doar, sobre
astrologia...
Mortari e a história
do micro roubado
Mais depoimentos:
O médico, o
astrólogo e o professor, por Celisa Beranger e Ana Ocampo
A última conversa: um presente de
despedida, por Waldemar Falcão
|