Com a morte nas pistas e o impressionante cortejo
fúnebre pelas ruas de São Paulo, Senna atualizou o
mito do herói sacrificado e permitiu à população
de São Paulo cometer um ato de antropofagia.
Na manhã de 4 de maio de 1994 aconteceu uma
das mais impressionantes manifestações populares da
vida de São Paulo. O cortejo fúnebre com o esquife
do piloto Ayrton Senna cruzava a cidade. Multidões foram
para as ruas num estado de comoção cujo único
paralelo fora a morte de Tancredo Neves, nove anos antes.
Como se sabe, há várias hipóteses
para o horário de fundação de São Paulo.
Acontecimentos como o funeral de Senna são oportunidades
de verificarmos na prática a validade dessas hipóteses,
partindo do princípio de que um evento de tal repercussão
certamente deve corresponder a alguma forma de ativação
poderosa na carta da cidade.
A hipótese que utilizo é de que a fundação
tenha ocorrido com o Ascendente na segunda metade de Áries,
em oposição a Urano. Utilizando o horário das
10h28 LMT, temos o vigésimo grau de Áries no Ascendente,
e é este mapa que, combinado com a carta natal de Ayrton
Senna, apresenta alguns resultados interessantes. O Saturno de Senna
cai sobre Vênus no Meio-Céu de São Paulo, indicando
uma admiração respeitosa e uma relação
durável. A cidade é fiel a seu ídolo. Os dois
Martes estão em conjunção e, como o Marte de
Senna recebe uma oposição de Urano, esta oposição
também é recebida pelo Marte e pelo Mercúrio
de São Paulo, o que significa que o piloto excitava e eletrizava
a cidade onde nasceu. O Sol de Senna em oposição ao
Júpiter da cidade é um aspecto de entrega e exageros.
Como o Sol de Senna está na casa 12 da cidade, alguma forma
de perda poderia ser esperada.
|
Carta interna: São Paulo, fundação
- 25.1.1554, 10h28 LMT - 23s32, 46w37. Planetas no círculo
externo: mapa natal de Ayrton Senna. Além desta hipóse
para fundação de São Paulo, adotada pelo
autor, existem ainda as de Raul V. Martinez e Barbara Abramo,
que podem ser vistas na edição
20 de Constelar. |
Todavia, é quando comparamos o mapa de São
Paulo, na hipótese das 10h28, com o mapa do funeral de Senna
que a revelação se faz mais nítida. São
Paulo vivia, naquele ano, o trânsito de Urano e Netuno por
sua casa 10, ainda próximos do Meio-Céu. Estes planetas
ativavam, por quadratura, Urano e Lua do mapa radical da cidade.
Para citarmos apenas mais um aspecto, o Sol em trânsito passava,
naquela manhã, exatamente sobre Netuno na casa 1 da cidade.
|
Carta interna: São Paulo, fundação
- 25.1.1554, 10h28 LMT - 23s32, 46w37. Planetas no círculo
externo: trânsitos para as 10h45 da manhã de 4.5.1994,
durante o funeral de Ayrton Senna, cujo esquife desfilou em
carro aberto pelas principais vias da cidade. |
São Paulo teve seu começo numa cerimônia
religiosa. Como começos são representados pela casa
1, Netuno no final desta casa é um bom símbolo para
o núcleo de jesuítas que, com uma prece ao ar livre
e a construção de uma tapera de taipa, riscaram o
ponto de partida da grande metrópole. A ativação
de Netuno radical pelo Sol, assim como a passagem de Netuno em trânsito
pelo Meio-Céu da cidade, falam de um ritual religioso. E
foi nisso que o funeral de Senna se transformou: um enorme ritual
de louvor ao herói sacrificado, um ato de purificação
coletiva em que a cidade lavou suas dores e, simbolicamente, reinvestiu
de sentido sua própria imagem - seu Ascendente em Áries,
vivificado por Senna, que fez o papel do mártir ariano .
Netuno transitando no Meio-Céu e já ativando a Lua
radical paulistana também fala de perdas - não a perda
plutoniana, que soa como mutilação e descida infernal,
mas a perda netuniana, em que o objeto querido se desmaterializa
num nível mais objetivo para ressurgir, mais pleno e luminoso,
num plano inalcançável.
Se São Paulo investiu tanto afeto em Senna,
se chorou com tanta intensidade a perda do herói-mártir,
é porque a cidade precisava, no fundo, voltar a suas origens
e passar por um recomeço. E eis uma constatação
surpreendente: Senna era tão ariano quanto José de
Anchieta, o fundador da cidade. Seres tão diferentes, ambos
corporificavam o mesmo princípio. Eram pioneiros e guerreiros,
cada um a seu modo. E os rituais em louvor do herói sacrificado
funcionam mais ou menos como os atos de antropofagia dos índios
brasileiros: são mecanismos simbólicos de absorção
da força daquele que se entrega em holocausto. Como numa
missa pagã, São Paulo comeu a carne e bebeu o sangue
de Senna no dia 4 de maio de 1994.
Leia outros artigos de Fernando
Fernandes.
Todas as caras de Sampa - 15
perfis de quem marcou a vida da cidade.
Todos os artigos sobre São Paulo na
história de Constelar.
|