Um
olhar brasileiro em Astrologia
Edição 109 :: Julho/2007 :: - |
|
|
Novidades em mapas do Brasil Um link direto para os vinte mapas mais recentes Em breve: uma nova versão de Mapas do Brasil. |
UMA LEITURA DE PAUL FEYERABEND A relação de poder entre
|
Cristina Machado |
A condenação da Astrologia por muitos cientistas não é fruto da aplicação rigorosa de métodos de investigação, mas sim da imposição autoritária de um único sistema de pensamento. Quem afirma isso é o filósofo Paul Feyerabend, um dos arautos da nova filosofia da ciência.
Paul Feyerabend colaborou para a falência dos modelos normativos, desmistificando o método científico. Extremamente polêmico, principalmente por tratar de assuntos pouco usuais - como a astrologia -, para ele, a ciência não é o único e nem o melhor sistema de pensamento desenvolvido pelo homem, tendo sido alavancada a um estatuto de superioridade por forças históricas que decretaram o que deveria ser o padrão de conhecimento. Dessa maneira, o problema da demarcação entre ciência e não-ciência - como é o caso da discussão sobre a cientificidade da astrologia - tende a se tornar obsoleto, pelo menos do ponto de vista "puramente" epistemológico, passando a ser entendido como uma questão ético-política.
Paul Karl Feyerabend (Viena, 13 de janeiro de 1924 Genolier, 11 de fevereiro de 1994) foi um filósofo austríaco que viveu em diversos países como Reino Unido, Estados Unidos, Nova Zelândia, Itália e Suíça. Seus maiores trabalhos são Against Method (publicado em 1975), Science in a Free Society (publicado em 1978) e Farewell to Reason (uma coleção de artigos publicados em 1987). Feyerabend tornou-se famoso pela sua suposta visão anarquista da ciência e por sua rejeição da existência de regras metodológicas universais. É uma figura influente na filosofia da ciência, e também na sociologia do conhecimento científico. (fonte: Wikipedia) |
A partir de 1962, com a publicação de A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn, começa a surgir um híbrido que reúne a função normativa [1] da filosofia da ciência e a função descritiva da história da ciência. Entretanto, a insuficiência disciplinar da filosofia da ciência já fora detectada por Kuhn, que, para entender como a ciência progride, substituiu a preocupação com a estrutura lógica pela histórica. A partir de então, torna-se muito difícil sustentar o limitado modelo normativo-demarcacionista, pois ele não dá conta de responder a priori o que é ciência, como indica a análise dos critérios de demarcação entre ciência e não-ciência propostos ao longo do século XX [2]. E se não é a priori que se define o que é ciência, não se trata, então, de um modelo normativo. Afinal, como ser normativo a posteriori? Cabe, portanto, uma abordagem histórica, descritiva, a posteriori, para se demarcarem os domínios científicos.
Paul Feyerabend, um dos arautos da nova filosofia da ciência, colaborou para a falência dos modelos normativos, desmistificando o método científico. Para ele, não há critérios absolutos de cientificidade e nem um método único para a ciência, mas sim pluralismo metodológico. Podemos entender o pluralismo como a possibilidade de se tomar cada coisa como aparece, tentando tratá-la em seus próprios termos. No caso da ciência, ela não se limita a modelos metodológicos, epistemológicos e ontológicos dados de antemão, e as apostas do pluralismo de Feyerabend são na liberdade e na criatividade humanas. Além disso, uma de suas principais reflexões diz respeito ao estatuto da ciência: o que ela tem de tão especial? Para Feyerabend, a ciência não é o único e nem o melhor sistema de pensamento desenvolvido pelo homem, tendo sido alavancada a um estatuto de superioridade por forças históricas, violentas, que usurparam o poder e decretaram o que deveria e o que não deveria ser o padrão de conhecimento. Dessa maneira, o problema da demarcação entre ciência e não-ciência tende a se tornar obsoleto, pelo menos do ponto de vista "puramente" epistemológico, passando a ser entendido como uma questão ético-política.
No contexto da querela normativo-demarcatória, o caso da astrologia é citado diversas vezes, de maneira geral como exemplo de pseudociência. Feyerabend, como veremos, é a voz dissonante, especialmente no texto "O estranho caso da astrologia". Taxado de relativista, assim como Kuhn e outros, talvez possamos entender Feyerabend e toda a nova filosofia da ciência como proponentes de uma nova forma de racionalidade científica: uma racionalidade contextualizada, quer seja associada a paradigmas (Kuhn), programas de pesquisa (Lakatos) ou tradições de pesquisa (Laudan). Num sentido mais amplo, uma racionalidade associada a uma cultura. Assim, em vez de um contraditório "tudo é relativo" (se tudo é relativo, então esta afirmação também é relativa), pois "o homem é a medida de todas as coisas", podemos pensar em algo assim: a comunidade é a medida de todas as coisas que lhe dizem respeito, pois é no seu interior que se definem os conceitos e que se tecem as redes semânticas que emprestarão significado ao mundo. Critérios, métodos, padrões e regras só fazem sentido, portanto, num dado contexto, pois só se constituem e também se modificam com o uso, não sendo estabelecidos a priori (Feyerabend, 2001, pp.56-57).
O problema do relativismo científico, ou seja, da não-existência de critérios intrínsecos à ciência que nos conduzam a uma escolha racional, universal e atemporal, leva-nos à seguinte questão: como justificar a ciência da maneira usual, com pretensões de verdade, universalidade e neutralidade, numa sociedade plural em que tanto verdade quanto falsidade podem ser explicadas racionalmente? Ou seja, se as verdades são datadas - o que é verdade aqui e agora pode não sê-lo amanhã ou em qualquer outro tempo/espaço -, então não há mais como justificar a ciência dessa maneira, pois os modelos normativos de filosofia da ciência, bem como quaisquer outros sistemas de pensamento totalizantes, foram colocados em xeque pelo pluralismo, que é fruto das noções modernas de liberdade e democracia. Nesse sentido, podemos, nos termos de Feyerabend, pensar num relativismo democrático (Feyerabend, 1981, pp.28-33) ou num pluralismo cultural, em vez de uma admirável monotonia nova (Feyerabend, 1987, p.273), na qual se impõem abstrações e estereótipos - numa palavra, uniformização -, em detrimento da criatividade humana, da diferença cultural e da abundância do ser [3].
Partindo do princípio de que a ciência se instituiu pela força, assim como a própria cultura ocidental [4], e não por sua pretensa superioridade epistemológica, metodológica ou ontológica, é possível entender, junto com Feyerabend, o exercício de poder da ciência sobre todos os outros sistemas de pensamento. E é disso que trataremos aqui, da arrogância do poder estabelecido em relação à astrologia, que, com o advento da ciência moderna, passou a uma condição de marginalidade, porque todas as apostas se viraram contra ela. Só para citar alguns fatos que ilustram essa postura impositiva: 1) a criação da Academia de Ciências por Colbert, em 1666, sem incluir a astrologia [5]; 2) o decreto de Luís XIV, em 1682, condenando a difusão dos almanaques astrológicos; 3) a proibição, a partir de 1710, da impressão das Efemérides e das tábuas de casas; e 4) o manifesto de 186 cientistas contra a astrologia, em 1975, que analisaremos mais adiante.
Dessa maneira, é possível esclarecer finalmente que a relação entre astrologia e ciência é uma relação de poder - uma força política -, bem como o problema da demarcação entre ciência e não-ciência, nada tendo a ver com critérios epistemológicos.
[1] Entenda-se função normativa como a perspectiva disciplinar da filosofia da ciência, com sua pretensão demarcacionista de delimitar o domínio da ciência e de definir como esta deve proceder para ser ciência.
[2] Grosso modo, os critérios propostos são: verificabilidade (positivismo lógico), refutabilidade (Popper), ciência normal (Kuhn) e ciência madura (Lakatos). Para mais informações, remeto o leitor à minha dissertação de mestrado Sobre a falência dos modelos normativos de filosofia da ciência - a astrologia como um estudo de caso (PUC-Rio, 2006), onde faço uma análise detalhada dos critérios de demarcação.
[3] Em seu último livro, recentemente lançado no Brasil, A conquista da abundância, Feyerabend se detém no que ele chama de "conto da abstração versus a riqueza do ser", ou seja, a tendência crescente, no desenvolvimento da cultura ocidental, de usar abstrações e estereótipos, desconsiderando o particular e o detalhe.
[4] Podemos pensar em forças mais violentas, como as Cruzadas, a catequização do Novo Mundo e a recente moda de impor a democracia, o modelo econômico e as suas respectivas formas de vida a outros povos, mas também em forças mais dissimuladas, como a difusão de uma visão de mundo uniforme e as práticas cada vez mais definidas por uma elite tecnocientífica que determina quem tem prestígio e poder na sociedade.
[5] Essa decisão política compõe o cenário de um "projeto" de modernidade, cujo ideal de reflexão autônoma do sujeito, é iniciado por Descartes. As formas de pensamento baseadas na semelhança - como é o caso de, pelo menos, parte da astrologia - não estavam incluídas nesse projeto (Foucault, 2000, p.10).
|
Atalhos de Constelar | Voltar à capa desta edição |Cristina Machado - A relação de poder
entre Astrologia e Ciência | Introdução | Feyerabend:
l'enfant terrible da filosofia da ciência | Edições anteriores: Fernando Fernandes - Ventania sobre Pindorama: os
antropófagos estão de volta | O
sentido de Urano em Peixes para o Brasil | |
Cadastre
seu e-mail e receba em primeira mão os avisos de atualização
do site! |
|
2013, Terra do Juremá Comunicação Ltda. Direitos autorais protegidos. Reprodução proibida sem autorização dos autores. |